Além de poeta, Felipe Areda também é militante do Partido Socialismo e Liberdade, e publicou hoje um texto sobre como a militância feminista e LGBT defende uma família protetiva, justa e livre da violência. Para muitas e muitos LGBTs, as violências sofridas na escola têm de ser escondidas dos familiares, justamente quem tem a responsabilidade da proteção e do cuidado, pois esses ameaçam com mais violências. Pelo fim de famílias e escolas violentas é o pelo o quê temos lutado!
http://csolpsol.org/mulheres/a-defesa-de-uma-familia-protetiva-2/
Afinal, qual o modelo de família que desejam proteger os deputados que hoje fazem parte da Comissão de Direitos Humanos e Minorias?
Felipe Areda* em colaboração para o site do CSOL
É recorrente o discurso que acusa o movimento pela diversidade sexual e pelo fim de qualquer opressão de gênero de estar destruindo a família. No campo de batalha evidenciado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados nas últimas semanas, é comum ouvir dos apoiadores do Deputado Marco Feliciano palavras de ordem de defesa da família. É dita aos berros, como quem protege o mais sagrado ou como quem espera que uma palavra antiga e mágica, lançada com muita fé, seja capaz de derreter qualquer militante feminista, lésbica, gay, bissexual, travesti ou transexual. O uso ideológico da ideia de família para desmobilizar discussões que visam enfrentar opressões naturalizadas em nossa sociedade não é recente. Em 1964, em 19 de março, 500 mil pessoas marcharam da Praça da República a da Sé sob o slogan: “A família que reza unida, permanece unida”. Com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade a burguesia alardeava o risco do Comunismo à família brasileira. Quem não lembra ter alguma vez ouvido que Comunistas comiam criancinhas?
Talvez a frase quisesse distorcer que no Comunismo, as crianças comem, como Cuba evidenciou ao ser o único país da América Latina e Caribe a erradicar a desnutrição infantil. O fato é que a Marcha da Família de 1964 tinha menos relação com Deus do que com a reação da burguesia latifundiária contra as reformas de base defendidas por João Goulart, as quais incluíam a reforma agrária e urbana, a erradicação do analfabetismo e transformações nos setores políticos e fiscais. Também, embora ostentasse em seu nome a Liberdade como objeto de luta, tinha muito pouco a ver com ela, já que essas manifestações foram tomadas pelos militares como legitimadoras do Golpe de 64.
Agora o discurso ideológico de proteção à família ganha força como argumento para deslegitimar e atacar as reivindicações de direitos sociais de mulheres e lgbts. O empoderamento das mulheres e a luta contra a homofobia destruirão a família – alardeiam os conservadores. Daqui alguns dias, em analogia as histórias de Sininho e Peter Pan, dirão que cada vez que alguém pronuncia em voz alta “PLC 122”, uma família desaparece da face da terra. Isso nos obriga a refletir sobre o que significa esse conservadorismo. O conceito de conservador nos remete a alguém que defende a manutenção e preservação de algo – algo que segundo eles representam o fundamento da sociedade e espécie. Dentro dessa perspectiva a família é o que há de mais natural e talvez, justamente por isso, é tão frágil que precisa ser constantemente protegida, afinal – como diria Oscar Wilde – “a naturalidade é uma pose difícil de ser mantida”.
Chamo esse discurso de ideológico, para evidenciar seu papel de mascaramento. O discurso reacionário faz parecer que as famílias brasileiras estão e sempre estiveram bem, que são o reduto da felicidade e do bem viver e que por isso devem ser salvaguardadas das ameaças externas: na família está a proteção, no mundo a violência. Infelizmente, essa não é a realidade. Esse discurso mascara que a família é não apenas o local onde grande parte das violências ocorrem, como sua estrutura a legitima e a oculta.
Por violência entendo ações pontuais ou contínuas que estabelecem desigualdade, por meio da força, da coerção psicológica e econômica ou da naturalização, para fins de exploração, dominação e opressão, bem como qualquer discurso ou ação que impeça ou anule a fala ou ação de outro sujeito, submetendo-o a sua vontade e tratando-o como coisa ou sujeito menor. Também como a família é um espaço de desenvolvimento do sujeito e dentro dela há pessoas que dependem de cuidados prestados por familiares, também é violência a omissão do responsável em supervisionar ou prover necessidades básicas de criança, adolescente, pessoa idosa ou pessoa com deficiência que necessite de cuidados. A violência intrafamiliar pode se dar por meio da violência física, da violência psicológica, da negligência, do abandono, da violência sexual e da exploração da força de trabalho. Seus principais alvos são: as crianças e adolescentes, as mulheres, as pessoas idosas e as pessoas com deficiência.
Os marcos legais para o enfrentamento da violência familiar são principalmente a Lei Nº. 8.069/1990, a Lei Nº 10.741/2003 e a Lei Nº 11.340/2006. Elas instituíram, respectivamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso e a Lei Maria da Penha. O ECA enfrenta a violência contra crianças e adolescente no espaço familiar ao defini-las como sujeitos de direitos – e não como sujeitos “menores” – rompendo o adultocentrismo da legislação e cultura brasileiras, aponta o dever da família de garantia e proteção de seus direitos, especifica a convivência familiar como direito, bem como constrói instancias democráticas e comunitários de proteção ao criar os Conselhos Tutelares como parte do Sistema de Garantia de Direitos. O Estatuto do Idoso assegura às pessoas idosas os direitos fundamentais inerentes a pessoa humana e também cria mecanismo de proteção contra a omissão ou abuso da família. A Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja a perpetrada por maridos, cônjuges, companheiros e companheiras, seja a por pais, irmãos e outros parentes (o que torna a Lei Maria da Penha uma legislação fundamental para a proteção de mulheres lésbicas das violências sofridas no espaço familiar, embora esse papel da Lei Nº 11.340/2006 não seja divulgada).
A sociedade brasileira recrudesce seu discurso conservador toda vez que uma legislação busca romper a estrutura de violência que ocorre dentro do espaço familiar. Comumente vai a público defendendo a violência como educativa e fundamental para o desenvolvimento da família. É que temos visto dos debates em torno do Projeto de Lei Nº 7672/2010, que altera o ECA, estabelecendo o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto. Desesperados frente a derrocada da legitimação da violência, a sociedade brasileira clama pelo direitos de bater nos filhos e filhas e tratá-los como posse, como outrora foram os africanos e africanas escravizadas, as empregadas domésticas e as esposas.
O que o discurso ideológico de proteção da família mascara, os dados não deixam esconder. A cada 5 minutos, uma mulher é agredida no país, a cada 2 horas, uma é assassinada e em 80% dos casos o agressor é o cônjuge ou namorado. Os dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde apontaram que em 2011, 36% da violência sofrida por crianças de 0 a nove anos foi negligência ou abandono e 35% violência sexual. Diferentemente do que se costuma afirmar, a violência está em casa, é predominantemente perpetrada por parentes e pessoas conhecidas da vítima e por homens heterossexuais. Segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 38,2% dos agressores homofóbicos são da própria família. Há outras violências ainda mais naturalizadas. Podemos citar como no Brasil é comum que familiares como pais, padrastos, tio, irmãos e primos mais velhos obriguem os meninos a terem contato com material pornográfico desde a pré-adolescência ou que mesmo os levem a profissionais do sexo para que sejam “iniciados” sexualmente.
Os movimentos sociais que visam superar essas violências não estão buscando desmoronar a família, mas desmoronar uma estrutura densa e arcaica de violência que não permite que a família cumpra sua função protetiva. Quando me dizem que temos que temos que proteger a família, costumo dizer que precisamos enfrentar as violências que ocorrem dentro dela para fortalecê-la em sua função protetiva. É nesse sentido que a luta pela afirmação da dignidade da diversidade sexual e pelo fim de qualquer opressão de gênero não quer destruir a família, mas quer fortalecê-la. Não adianta gritar o nome da “família” em atos e manifestações, como se o discurso de proteção à família se opusesse à luta dos movimentos feministas e LGBT – pelo contrário.
Nesses anos de militância no movimento LGBT e pelos direitos das crianças e adolescentes, tenho visto barbaridades que lagrimejam meus olhos ao tentar descrevê-las: adolescentes que precisam fugir as pressas de casas deixando para trás até suas roupas para não sofrer mais um espancamento, pais que expulsam os filhos de casa e sem pesar trocam a fechadura, pais que submetem filhos e filhas ao cárcere privado, a exorcismos, à violência sexual, até que o adolescente atente contra sua própria vida, pais que preferem dizer aos parentes que o filho faleceu a dizer que ele vive uma relação homossexual. Precisamos fortalecer a família como espaço de desenvolvimento constante, de cuidado, de carinho, de afeto, de respeito mútuo, de compreensão. Creio que nenhuma pessoa, religiosa ou não, discordaria desse objetivo. Mas não é essa família que a maior parte da população possui hoje, essa família precisa ser construída.
O discurso de destruição da família afirmado pela Bancada de Deputados que me recuso a chamar de evangélica – pois o discurso de ódio não representa o povo cristão – cada vez mais é utilizado para se opor a lutas sociais. A tática que esses deputados estão adotando é a difamação das e dos ativistas dos movimentos feministas e LGBT. Publicações virtuais e panfletos estão sendo divulgados distorcendo ou forjando falas de ativistas para fazer parecer que eles e elas são contra família, são contra o povo cristão ou que defendem a violência sexual a crianças e adolescentes. Já foram alvos o Deputado do Psol Jean Willys, a ativista Indianara Siqueira, a pesquisadora Tatiana Lionço e, mais recentemente, o professor brasiliense Cristiano Lucas. Em vídeo publicado semana passada, o Deputado Jair Bolsonaro fez uma distorção grosseira da fala do professor dando conotações pedófilas para a sua fala. Em nome do povo cristão, Jair Bolsonaro descumpre com sua difamação e discurso de ódio os fundamentos mais básicos do cristianismo. Como consta no Livro de Provérbios (cap 10, versículo 18) “O que retém o ódio é de lábios falso, e o que difama é insensato”. O livro de Salmos, também bastante explicito: “Quem, Senhor, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte? (…) o que não difama com sua língua, não faz mal ao próximo, nem lança injúria contra o seu vizinho” (Salmo 15: 1-3).
Quem conhece Cristiano Luís sabe da sua trajetória em defesa dos direitos humanos, de uma educação pública de qualidade e por um mundo que nas quais crianças e adolescentes não sejam mais submetidos às violências as quais muitas delas ele mesmo já foi submetido. E quem pensa que a distorção, a manipulação e a mentira são armas eficazes contra quem cresceu tendo que aprender a lutar está enganado. O discurso de ódio e a difamação não passarão!
O que devemos nos perguntar e o que esse discurso tenta mascarar. Assim como 1964, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade não tinha nada a ver com Família, Deus e Liberdade, mas muito com os latifúndios, a burguesia e o poder, essa mobilização em defesa da família trás um projeto oculto. As negociações dessa bancada com a bancada ruralista para manutenção do PSC na Comissão de Direitos Humanos e Minorias talvez nos dê algumas pistas
*Felipe Areda é antropólogo, educador social, comunista e luta pelo direitos de crianças e adolescentes terem comida em sua mesa e não sofrerem desnutrição como sofrem em um regime capitalista.