Transcrição de trecho do livro "Devassos no Paraíso" de João Silverio Trevisan. Militante do movimento LGBT (na época Movimento Homossexual) desde a época da ditadura, fundador do grupo Somos e do jornal Lampião na Esquina.
Existem lutas políticas mais importantes que outras? Quem define nossas pautas de militancia?
O texto recupera um pouco da história da militancia LGBT em nosso país e seus embates com a esquerda universitária por um lugar ao sol das lutas legitimas.
Capítulo 2 - Novas idéias no front, pág 343. - Devassos no Paraíso
Nosso pequeno grupo se encontrava num impasse quando, em 8 de fevereiro de 1979, teve a oportunidade de estrear num debate público, na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, então um dos pulmões do progressismo oficial brasileiro. O auditório estava abarrotado. E nosso discurso político ainda não tinha amadurecido. À mesa, eu e outros representantes do grupo tínhamos tomado calmante e alguns sofriam de diarréia. Como era de se esperar, as posições se encarniçaram. De um lado, estudantes e profissionais da esquerda universitária protestavam sua fidelidade ao dogma da luta de classes e ao carisma do proletariado. De outro, nós reivindicávamos a originalidade de nossa discussão e independência de nossa análise, não abrangidas necessariamente pela luta de classes, mas nem por isso menos preocupados com a transformação social. A primeira posição representava a “luta maior”, segundo a qual haveria prioridades revolucionarias – e a prioridade máxima era, justamente, a luta do proletariado que deflagaria e conduziria a revolução em seu sentido mais abrangente, sendo o demais irrelevante e até divisionista. Diante dela, nós éramos a “luta menor”, portanto secundária, enquanto contraposição que ousava contestar isso que nos parecia uma sacralização da classe operaria; na melhor das hipóteses, não passávamos de “minorias” – nome, aliás, da série de debates da qual estávamos participando. Na noite anterior, já os negros, que vinham se organziando contra a discriminação racial e pela afirmação de sua cultura, independentemente da luta partidária, tinham sido massacrados por grande parte do público (de brancos), sob acusação de estar promovendo uma reles “discussão existencial” em torno de sua problemática. Como se previa que num debate inédito sobre homossexualismo o auditório estava cheio de bichas e lésbicas, nós da mesa combináramos quejogaríamos as perguntas de volta ao público, sempre que possível, para que ele assumisse a briga sem necessidade de porta-vozes. Quando, no decorrer da acalorada discussão, um esquerdista ortodoxo (na verdade, uma bicha enrustida que eu conhecia) observou que a luta homossexual não passava de uma escamoteação da luta de classes, não contive minha informação: subi numa cadeira e pedi às pessoas do auditório que relatassem fatos concretos de como nós homossexuais éramos escamoteados justamente em nome da luta de classes. A reação foi fulminante. Homens e mulheres, visivelmente emocionados e sem medo de aparecer publicamente como homossexuais, levantaram-se para relatar, em alto e bom som, experiências pessoais de discriminação de setores progressistas contra eles, por sua orientação sexual. Assim foi citado o exemplo de uma professora daquela mesma universidade, que solicitara aos alunos um trabalho escolar analisando os motivos da ausência de homossexuais entre os operários. Essa era, na época, a mesma opinião do então messiânico líder sindical Lula, que definira o feminismo como “coisa de quem não tem o que fazer”. Como se podia esperar, foram trocados xingos entre representantes do movimento estudantil e homossexuais ali presentes – sinal de que já sabíamos enfrentar e não pedíamos desculpas pelo que éramos . “O importante é a liberdade, que inclui o direito de cada um ir para a cama com quem quiser”, gritava uma estudante homossexual. “Se não for para caminhar juntos, então eu quero que os homossexuais vão à puta-que-pariu”, contestava um jovem esquerdista. Ao que outro homossexual, da platéia, gritava: “O problema de qualquer revolução é saber quem vai lavar a louça depois.” Risos, apupos, palmas. Ao final das três horas de debate, nossas camisas empapadas de suor davam a sensação de que o movimento homossexual brasileiro acabava de conquistar o espaço que lhe era devido. Nossa luta estava finalmente na rua. Emocionados e nos beijando em público, já não sentíamos nenhum pudor ideológico. Só não sabíamos que aquele nosso primeiro enfrentamento com a esquerda universitária não seria o último, nem o mais violento. Meses depois, fomos informados de que, na mesma faculdade onde ocorrerá o debate, um ativista guei (que gostava de se apresentar, provocadoramente, com o nome feminino de Taís e desfilar travestido pelas ruas noturnas de São Paulo) tinha sido atraído para um bosque nas vizinhanças e aí recebera uma surra, quelhe custou um dente quebrado; enquanto o espancavam, os quatro militantes esquerdistas (seus conhecidos) acusavam-no de estar tentando dividir a luta do proletariado e o exortavam a parar com “essa frescura de movimento homossexual”.
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