quinta-feira, 18 de abril de 2013

A defesa de uma família protetiva, por Felipe Areda

Além de poeta, Felipe Areda também é militante do Partido Socialismo e Liberdade, e publicou hoje um texto sobre como a militância feminista e LGBT defende uma família protetiva, justa e livre da violência. Para muitas e muitos LGBTs, as violências sofridas na escola têm de ser escondidas dos familiares, justamente quem tem a responsabilidade da proteção e do cuidado, pois esses ameaçam com mais violências. Pelo fim de famílias e escolas violentas é o pelo o quê temos lutado!

http://csolpsol.org/mulheres/a-defesa-de-uma-familia-protetiva-2/



Afinal, qual o modelo de família que desejam proteger os deputados que hoje fazem parte da Comissão de Direitos Humanos e Minorias?

Felipe Areda* em colaboração para o site do CSOL

É recorrente o discurso que acusa o movimento pela diversidade sexual e pelo fim de qualquer opressão de gênero de estar destruindo a família. No campo de batalha evidenciado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados nas últimas semanas, é comum ouvir dos apoiadores do Deputado Marco Feliciano palavras de ordem de defesa da família. É dita aos berros, como quem protege o mais sagrado ou como quem espera que uma palavra antiga e mágica, lançada com muita fé, seja capaz de derreter qualquer militante feminista, lésbica, gay, bissexual, travesti ou transexual. O uso ideológico da ideia de família para desmobilizar discussões que visam enfrentar opressões naturalizadas em nossa sociedade não é recente. Em 1964, em 19 de março, 500 mil pessoas marcharam da Praça da República a da Sé sob o slogan: “A família que reza unida, permanece unida”. Com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade a burguesia alardeava o risco do Comunismo à família brasileira. Quem não lembra ter alguma vez ouvido que Comunistas comiam criancinhas?

Talvez a frase quisesse distorcer que no Comunismo, as crianças comem, como Cuba evidenciou ao ser o único país da América Latina e Caribe a erradicar a desnutrição infantil. O fato é que a Marcha da Família de 1964 tinha menos relação com Deus do que com a reação da burguesia latifundiária contra as reformas de base defendidas por João Goulart, as quais incluíam a reforma agrária e urbana, a erradicação do analfabetismo e transformações nos setores políticos e fiscais. Também, embora ostentasse em seu nome a Liberdade como objeto de luta, tinha muito pouco a ver com ela, já que essas manifestações foram tomadas pelos militares como legitimadoras do Golpe de 64.

Agora o discurso ideológico de proteção à família ganha força como argumento para deslegitimar e atacar as reivindicações de direitos sociais de mulheres e lgbts. O empoderamento das mulheres e a luta contra a homofobia destruirão a família – alardeiam os conservadores. Daqui alguns dias, em analogia as histórias de Sininho e Peter Pan, dirão que cada vez que alguém pronuncia em voz alta “PLC 122”, uma família desaparece da face da terra. Isso nos obriga a refletir sobre o que significa esse conservadorismo. O conceito de conservador nos remete a alguém que defende a manutenção e preservação de algo – algo que segundo eles representam o fundamento da sociedade e espécie. Dentro dessa perspectiva a família é o que há de mais natural e talvez, justamente por isso, é tão frágil que precisa ser constantemente protegida, afinal – como diria Oscar Wilde – “a naturalidade é uma pose difícil de ser mantida”.

Chamo esse discurso de ideológico, para evidenciar seu papel de mascaramento. O discurso reacionário faz parecer que as famílias brasileiras estão e sempre estiveram bem, que são o reduto da felicidade e do bem viver e que por isso devem ser salvaguardadas das ameaças externas: na família está a proteção, no mundo a violência. Infelizmente, essa não é a realidade. Esse discurso mascara que a família é não apenas o local onde grande parte das violências ocorrem, como sua estrutura a legitima e a oculta.

Por violência entendo ações pontuais ou contínuas que estabelecem desigualdade, por meio da força, da coerção psicológica e econômica ou da naturalização, para fins de exploração, dominação e opressão, bem como qualquer discurso ou ação que impeça ou anule a fala ou ação de outro sujeito, submetendo-o a sua vontade e tratando-o como coisa ou sujeito menor. Também como a família é um espaço de desenvolvimento do sujeito e dentro dela há pessoas que dependem de cuidados prestados por familiares, também é violência a omissão do responsável em supervisionar ou prover necessidades básicas de criança, adolescente, pessoa idosa ou pessoa com deficiência que necessite de cuidados. A violência intrafamiliar pode se dar por meio da violência física, da violência psicológica, da negligência, do abandono, da violência sexual e da exploração da força de trabalho. Seus principais alvos são: as crianças e adolescentes, as mulheres, as pessoas idosas e as pessoas com deficiência.

Os marcos legais para o enfrentamento da violência familiar são principalmente a Lei Nº. 8.069/1990, a Lei Nº 10.741/2003 e a Lei Nº 11.340/2006. Elas instituíram, respectivamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso e a Lei Maria da Penha. O ECA enfrenta a violência contra crianças e adolescente no espaço familiar ao defini-las como sujeitos de direitos – e não como sujeitos “menores” – rompendo o adultocentrismo da legislação e cultura brasileiras, aponta o dever da família de garantia e proteção de seus direitos, especifica a convivência familiar como direito, bem como constrói instancias democráticas e comunitários de proteção ao criar os Conselhos Tutelares como parte do Sistema de Garantia de Direitos. O Estatuto do Idoso assegura às pessoas idosas os direitos fundamentais inerentes a pessoa humana e também cria mecanismo de proteção contra a omissão ou abuso da família. A Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja a perpetrada por maridos, cônjuges, companheiros e companheiras, seja a por pais, irmãos e outros parentes (o que torna a Lei Maria da Penha uma legislação fundamental para a proteção de mulheres lésbicas das violências sofridas no espaço familiar, embora esse papel da Lei Nº 11.340/2006 não seja divulgada).

A sociedade brasileira recrudesce seu discurso conservador toda vez que uma legislação busca romper a estrutura de violência que ocorre dentro do espaço familiar. Comumente vai a público defendendo a violência como educativa e fundamental para o desenvolvimento da família. É que temos visto dos debates em torno do Projeto de Lei Nº 7672/2010, que altera o ECA, estabelecendo o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto. Desesperados frente a derrocada da legitimação da violência, a sociedade brasileira clama pelo direitos de bater nos filhos e filhas e tratá-los como posse, como outrora foram os africanos e africanas escravizadas, as empregadas domésticas e as esposas.

O que o discurso ideológico de proteção da família mascara, os dados não deixam esconder. A cada 5 minutos, uma mulher é agredida no país, a cada 2 horas, uma é assassinada e em 80% dos casos o agressor é o cônjuge ou namorado. Os dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde apontaram que em 2011, 36% da violência sofrida por crianças de 0 a nove anos foi negligência ou abandono e 35% violência sexual. Diferentemente do que se costuma afirmar, a violência está em casa, é predominantemente perpetrada por parentes e pessoas conhecidas da vítima e por homens heterossexuais. Segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 38,2% dos agressores homofóbicos são da própria família. Há outras violências ainda mais naturalizadas. Podemos citar como no Brasil é comum que familiares como pais, padrastos, tio, irmãos e primos mais velhos obriguem os meninos a terem contato com material pornográfico desde a pré-adolescência ou que mesmo os levem a profissionais do sexo para que sejam “iniciados” sexualmente.

Os movimentos sociais que visam superar essas violências não estão buscando desmoronar a família, mas desmoronar uma estrutura densa e arcaica de violência que não permite que a família cumpra sua função protetiva. Quando me dizem que temos que temos que proteger a família, costumo dizer que precisamos enfrentar as violências que ocorrem dentro dela para fortalecê-la em sua função protetiva. É nesse sentido que a luta pela afirmação da dignidade da diversidade sexual e pelo fim de qualquer opressão de gênero não quer destruir a família, mas quer fortalecê-la. Não adianta gritar o nome da “família” em atos e manifestações, como se o discurso de proteção à família se opusesse à luta dos movimentos feministas e LGBT – pelo contrário.

Nesses anos de militância no movimento LGBT e pelos direitos das crianças e adolescentes, tenho visto barbaridades que lagrimejam meus olhos ao tentar descrevê-las: adolescentes que precisam fugir as pressas de casas deixando para trás até suas roupas para não sofrer mais um espancamento, pais que expulsam os filhos de casa e sem pesar trocam a fechadura, pais que submetem filhos e filhas ao cárcere privado, a exorcismos, à violência sexual, até que o adolescente atente contra sua própria vida, pais que preferem dizer aos parentes que o filho faleceu a dizer que ele vive uma relação homossexual. Precisamos fortalecer a família como espaço de desenvolvimento constante, de cuidado, de carinho, de afeto, de respeito mútuo, de compreensão. Creio que nenhuma pessoa, religiosa ou não, discordaria desse objetivo. Mas não é essa família que a maior parte da população possui hoje, essa família precisa ser construída.

O discurso de destruição da família afirmado pela Bancada de Deputados que me recuso a chamar de evangélica – pois o discurso de ódio não representa o povo cristão – cada vez mais é utilizado para se opor a lutas sociais. A tática que esses deputados estão adotando é a difamação das e dos ativistas dos movimentos feministas e LGBT. Publicações virtuais e panfletos estão sendo divulgados distorcendo ou forjando falas de ativistas para fazer parecer que eles e elas são contra família, são contra o povo cristão ou que defendem a violência sexual a crianças e adolescentes. Já foram alvos o Deputado do Psol Jean Willys, a ativista Indianara Siqueira, a pesquisadora Tatiana Lionço e, mais recentemente, o professor brasiliense Cristiano Lucas. Em vídeo publicado semana passada, o Deputado Jair Bolsonaro fez uma distorção grosseira da fala do professor dando conotações pedófilas para a sua fala. Em nome do povo cristão, Jair Bolsonaro descumpre com sua difamação e discurso de ódio os fundamentos mais básicos do cristianismo. Como consta no Livro de Provérbios (cap 10, versículo 18) “O que retém o ódio é de lábios falso, e o que difama é insensato”. O livro de Salmos, também bastante explicito: “Quem, Senhor, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte? (…) o que não difama com sua língua, não faz mal ao próximo, nem lança injúria contra o seu vizinho” (Salmo 15: 1-3).

Quem conhece Cristiano Luís sabe da sua trajetória em defesa dos direitos humanos, de uma educação pública de qualidade e por um mundo que nas quais crianças e adolescentes não sejam mais submetidos às violências as quais muitas delas ele mesmo já foi submetido. E quem pensa que a distorção, a manipulação e a mentira são armas eficazes contra quem cresceu tendo que aprender a lutar está enganado. O discurso de ódio e a difamação não passarão!

O que devemos nos perguntar e o que esse discurso tenta mascarar. Assim como 1964, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade não tinha nada a ver com Família, Deus e Liberdade, mas muito com os latifúndios, a burguesia e o poder, essa mobilização em defesa da família trás um projeto oculto. As negociações dessa bancada com a bancada ruralista para manutenção do PSC na Comissão de Direitos Humanos e Minorias talvez nos dê algumas pistas




*Felipe Areda é antropólogo, educador social, comunista e luta pelo direitos de crianças e adolescentes terem comida em sua mesa e não sofrerem desnutrição como sofrem em um regime capitalista.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Curta "Eu Não Quero Voltar Sozinho" é censurado no Acre!

Carta aberta sobre a censura do curta metragem "Eu Não Quero Voltar Sozinho"

Queridos amigos e colegas,

No início da semana recebemos a notícia de que a exibição do curta Eu Não Quero Voltar Sozinho, como parte do programa Cine Educação, havia sido censurada no Acre.

O programa Cine Educação, uma parceria com a Mostra Latino-Americana de Cinema e Direitos Humanos, tem como objetivo "a formação do cidadão a partir da utilização do cinema no processo pedagógico interdisciplinar" e disponibiliza diversos filmes cujos temas englobem os direitos humanos, de modo que professores escolham quais são mais adequados para serem trabalhados em aula.

Na semana passada, no estado do Acre, uma professora escolheu o curta Eu Não Quero Voltar Sozinho e exibiu-o para seus alunos. Para aqueles que não conhecem, a trama narra a história de Leonardo, um adolescente cego que, ao longo do filme, vai se descobrindo apaixonado por um novo colega de sala.

Alunos presentes na exibição confundiram o curta metragem com o "kit anti-homofobia" e levaram a questão aos líderes religiosos, que mobilizaram políticos da região com o intuíto de proibir o projeto Cine Educação como um todo. Nenhum desses representantes públicos deu-se ao trabalho de ir atrás da verdade e descobrir que se tratava de um programa pedagógico com o intuito de levar o debate sobre direitos humanos para a sala de aula. Mais uma vez no Brasil, a educação perde a batalha contra o poder assustador das bancadas religiosas e conservadoras.

Neste momento, o programa Cine Educação está paralisado. Enquanto isso, os secretários de Educação e de Direitos Humanos do Acre estão articulando com o governador a possibilidade de garantir sua continuidade, enquanto os líderes evangélicos forçam o cancelamento definitivo do programa. Pelo que sabemos, mesmo que o programa seja reativado, o curta Eu Não Quero Voltar Sozinho será excluído do catálogo e não mais ficará disponível para que professores o utilizem no debate de questões que envolvem algo tão elementar quanto a sexualidade humana e tão importante quanto a deficiência visual.

De forma arbitrária, em uma república federativa cuja Constituição atesta um Estado laico, a sociedade está sendo privada de promover debates. Como pretendemos que adolescentes consigam respeitar a diversidade e formem-se cidadãos lúcidos, pensantes e ativos se informação, arte e cultura (sem qualquer caráter doutrinário) lhes são negadas?

Eu Não Quero Voltar Sozinho não é um filme proselitista, tampouco ergue bandeiras de nenhuma natureza. É apenas uma obra de ficção amplamente premiada em festivais de cinema no Brasil e no exterior, cujos predicados artísticos e humanos transcendem qualquer crença. Ademais, se assuntos referentes à orientação sexual dos indivíduos e seus respectivos direitos civis estão na pauta do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional, por que não debatê-los em sala de aula? Que combate sombrio é esse, que reacende a memória de um obscurantismo Inquisidor?

Produtores do Eu Não Quero Voltar Sozinho

Daniel Ribeiro e Diana Almeida

Abaixo, o curta metragem na íntegra: